Seu resto jogado no escuro. É isso que
deixei após minha partida precoce e minha saída silenciosa. Fiz-lhe um
bocado de cafuné, esperei você pegar no sono mais profundo e só fui
embora quando seu sorriso leve finalmente chegou, dizendo que seu
primeiro sonho havia começado.
Saí sem fazer alarde e, dessa vez,
diferente de todas as outras, não bati o dedinho do pé na quina de sua
cama e nem precisei apalpar suas paredes sempre tão magnéticas para meu
nariz. Não precisei nem acender a luz do quarto, apenas tirei meu peito
debaixo de sua cabeça e, no lugar dele, deixei meu travesseiro lotado do
meu cheiro para que não notasse minha fuga.
Sem fazer qualquer barulho, ainda tive a
audácia de abrir suas gavetas, armários e pastas do computador, pois
queria apagar de vez todas as provas e rastros daquilo que havíamos
vivido até ali. Joguei minha escova de dente pela janela e meu
desodorante coloquei no bolso. Calcei o chinelo que morava ao lado do
seu e na mochila, com dor no peito, coloquei os muitos livros que lhe
emprestei e você nunca nem pensou em ler. Por fim, para tentar
poupar-lhe de qualquer nó na garganta ou esbarrão imprevisível com a
saudade, apaguei do seu computador as fotos sorridentes que havíamos
tirado naquele Réveillon que passamos em Santiago e joguei na lixeira aquela playlist que ouvíamos em looping
eterno enquanto varávamos a madrugada entre goles de qualquer coisa
etílica e cigarros euforicamente acendidos um no outro, como se fôssemos
imunes ao câncer e à falta de ar.
Desculpe-me por ter saído sem que
pudesse notar, por ter me desfeito de nossas impressões digitais sem que
você tivesse a chance de me contrariar e por não ter deixado nenhum
mísero recado na sua geladeira explicando o motivo que me fez deixar
nosso amor inteiro em pedaços.
Eu realmente precisava ir, e só saí
antes da hora porque queria levar comigo somente as lembranças
imaculadas do nosso auge e sabia que só assim conseguiria fazer com que
nosso caso durasse para sempre. Eu saí de fininho naquela noite, pois
não queria esperar mais e correr o risco de presenciar a natural
decadência de nossa gana incontrolável. Eu saí antes que nossos beijos
infinitos virassem apenas selinhos apressados, sem gosto, presença de
língua ou demonstração de fome. Eu saí antes que faltasse conversa em
nossos passeios de domingo e antes que o volume do som do carro não
fosse mais diminuído para que pudéssemos ouvir o som de nossas vozes.
Saí antes de virarmos rotina, silêncio irreversível, acomodação covarde e
pena um do outro. Eu saí morrendo de vontade de continuar ali, com meu
pé encostado no seu e meu braço dormente debaixo de seu pescoço, mas
sabia que precisava ir enquanto ainda havia tempo para congelar aquele
sonho, perfeito como só ele foi.
__ Ricardo Coiro
Ouvindo: "Guaranteed" - Eddie Vedder